quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

O Corvo...

Edgar Allan Poe
Tradução de Machado de Assis1883
Em certo dia, à hora, à horaDa meia-noite que apavora,Eu caindo de sono e exausto de fadiga,Ao pé de muita lauda antiga,De uma velha doutrina, agora morta,Ia pensando, quando ouvi à portaDo meu quarto um soar devagarinhoE disse estas palavras tais:“É alguém que me bate à porta de mansinho;Há de ser isso e nada mais.”
Ah! bem me lembro! bem me lembro!Era no glacial dezembro;Cada brasa do lar sobre o chão refletiaA sua última agonia.Eu, ansioso pelo sol, buscavaSacar daqueles livros que estudavaRepouso (em vão!) à dor esmagadoraDestas saudades imortaisPela que ora nos céus anjos chamam Lenora,E que ninguém chamará jamais.
E o rumor triste, vago, brando,Das cortinas ia acordandoDentro em meu coração um rumor não sabidoNunca por ele padecido.Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,Levantei-me de pronto e: “Com efeito(Disse) é visita amiga e retardadaQue bate a estas horas tais.É visita que pede à minha porta entrada:Há de ser isso e nada mais.”
Minhalma então sentiu-se forte;Não mais vacilo e desta sorteFalo: “Imploro de vós - ou senhor ou senhora -Me desculpeis tanta demora.Mas como eu, precisando de descanso,Já cochilava, e tão de manso e mansoBatestes, não fui logo prestemente,Certificar-me que aí estais.”Disse: a porta escancaro, acho a noite somente,Somente a noite, e nada mais.
Com longo olhar escruto a sombra,Que me amedronta, que me assombra,E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,Mas o silêncio amplo e calado,Calado fica; a quietação quieta:Só tu, palavra única e dileta,Lenora, tu como um suspiro escasso,Da minha triste boca sais;E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;Foi isso apenas, nada mais.
Entro co'a alma incendiada.Logo depois outra pancadaSoa um pouco mais tarde; eu, voltando-me a ela:“Seguramente, há na janelaAlguma coisa que sussurra. Abramos.Ela, fora o temor, eia, vejamosA explicação do caso misteriosoDessas duas pancadas tais.Devolvamos a paz ao coração medroso.Obra do vento e nada mais.”
Abro a janela e, de repente,Vejo tumultuosamenteUm nobre Corvo entrar, digno de antigos dias.Não despendeu em cortesiasUm minuto, um instante. Tinha o aspectoDe um lord ou de uma lady. E pronto e retoMovendo no ar as suas negras alas.Acima voa dos portais,Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;Trepado fica, e nada mais.
Diante da ave feia e escura,Naquela rígida postura,Com o gesto severo - o triste pensamentoSorriu-me ali por um momento,E eu disse: “Ó tu que das noturnas plagasVens, embora a cabeça nua tragas,Sem topete, não és ave medrosa,Dize os teus nomes senhoriais:Como te chamas tu na grande noite umbrosa?”E o Corvo disse: “Nunca mais.”
Vendo que o pássaro entendiaA pergunta que lhe eu fazia,Fico atônito, embora a resposta que deraDificilmente lha entendera.Na verdade, jamais homem há vistoCoisa na terra semelhante a isto:Uma ave negra, friamente posta,Num busto, acima dos portais,Ouvir uma pergunta e dizer em respostaQue este é o seu nome: “Nunca mais.”
No entanto, o Corvo solitárioNão teve outro vocabulário,Como se essa palavra escassa que ali disseToda sua alma resumisse.Nenhuma outra proferiu, nenhuma,Não chegou a mexer uma só pluma,Até que eu murmurei: “Perdi outroraTantos amigos tão leais!Perderei também este em regressando a aurora.”E o Corvo disse: “Nunca mais.”
Estremeço. A resposta ouvidaÉ tão exata! é tão cabida!“Certamente, digo eu, essa é toda a ciênciaQue ele trouxe da convivênciaDe algum mestre infeliz e acabrunhadoQue o implacável destino há castigadoTão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,Que dos seus cantos usuaisSó lhe ficou, na amarga e última cantiga,Esse estribilho: “Nunca mais.”
Segunda vez, nesse momento,Sorriu-me o triste pensamento;Vou sentar-me defronte ao Corvo magro e rudo;E mergulhando no veludoDa poltrona que eu mesmo ali trouxeraAchar procuro a lúgubre quimera.A alma, o sentido, o pávido segredoDaquelas sílabas fatais,Entender o que quis dizer a ave do medoGrasnando a frase: “Nunca mais.”
Assim, posto, devaneando,Meditando, conjecturando,Não lhe falava mais; mas se lhe não falava,Sentia o olhar que me abrasava,Conjecturando fui, tranqüilo, a gosto,Com a cabeça no macio encosto,Onde os raios da lâmpada caiam,Onde as tranças angelicaisDe outra cabeça outrora ali se desparziam,E agora não se esparzem mais.
Supus então que o ar, mais denso,Todo se enchia de um incenso.Obra de serafins que, pelo chão roçandoDo quarto, estavam meneandoUm ligeiro turíbulo invisível;E eu exclamei então: “Um Deus sensívelManda repouso à dor que te devoraDestas saudades imortais.Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora.”E o Corvo disse: “Nunca mais.”
“Profeta, ou o que quer que sejas!Ave ou demônio que negrejas!Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do infernoOnde reside o mal eterno,Ou simplesmente náufrago escapadoVenhas do temporal que te há lançadoNesta casa onde o Horror, o Horror profundoTem os seus lares triunfais,Dize-me: “Existe acaso um bálsamo no mundo?”E o Corvo disse: “Nunca mais.”
“Profeta, ou o que quer que sejas!Ave ou demônio que negrejas!Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!Por esse céu que além se estende,Pelo Deus que ambos adoramos, fala,Dize a esta alma se é dado inda escutá-laNo Éden celeste a virgem que ela choraNestes retiros sepulcrais.Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”E o Corvo disse: “Nunca mais.”
“Ave ou demônio que negrejas!Profeta, ou o que quer que sejas!Cessa, ai, cessa!, clamei, levantando-me, cessa!Regressa ao temporal, regressaÀ tua noite, deixa-me comigo.Vai-te, não fica no meu casto abrigoPluma que lembre essa mentira tua,Tira-me ao peito essas fataisGarras que abrindo vão a minha dor já crua.”E o Corvo disse: “Nunca mais.”
E o Corvo aí fica; ei-lo trepadoNo branco mármore lavradoDa antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.Parece, ao ver-lhe o duro cenho,Um demônio sonhando. A luz caídaDo lampião sobre a ave aborrecidaNo chão espraia a triste sombra; e foraDaquelas linhas funeraisQue flutuam no chão, a minha alma que choraNão sai mais, nunca, nunca mais!

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